sábado, 29 de maio de 2010

Vandré, “Das Terras de benvirá”: Utopia e barbárie na MPB





Apesar da minha filiação ao tropicalismo e ao rock, como algumas das minhas principais influências, sempre me impressionou a força épica que a voz e melodias de Geraldo Vandré (representante fundamental da “canção de protesto”) imprimiam a seus versos contundentes. Particularmente me marcou muito a intensidade e integridade do álbum “Canto Geral” (1968), ao passo que este “Nas terras do benvirá”, que ouvi pela primeira vez na mesma época em que conheci o anterior, sempre me pareceu inacessível. Arrastado, triste, sombrio e sempre em tom de lamento, ele não me conquistou nas primeiras tentativas, embora de tempos em tempos eu retornasse a ele, talvez por algum incomodo profundo que ele me causasse.


Hoje à luz de uma nova audição, quase três décadas após a aquisição do vinil, e talvez, sensibilizado pelo excepcional documentário “Utopia e Barbárie”( de Silvio Tendler) fui arrebatado exatamente pelos mesmos aspectos que me afastaram nas primeiras tentativas (mistérios da experiência estética!). Numa despretensiosa retomada desta obra, já nos primeiros minutos ela me soou como um dos mais dramáticos registros do sentimento de toda uma geração diante da barbárie impostas pela ditadura.


Inevitável não me remeter ao mistério que cerca a figura do compositor, entre lendas (descartadas pelo próprio) sobre torturas (que teriam culminado em castração e na conseqüente loucura), o silêncio artístico de décadas (quebrado pela estranheza de uma canção em homenagem à Força Aérea), e o isolamento pessoal e em relação à música popular (já que segundo o próprio, ele teria se tornado ouvinte de música clássica, e se desinteressado pela MPB).


Respeitado o direito de um homem a dar sua própria versão de sua história, ou o direito a silenciar sobre ela, me sinto no entanto, no direito de manifestar meus sentimento ao ouvir novamente este desconcertante álbum. Na minha impressão de ouvinte, poucos discos transmitem com uma carga de tristeza tão profunda, o sentimento de uma geração que teve sonhos, liberdades e até vidas ceifadas pela ditadura.


O simples fato de ter sido gravado em pleno exílio, nos primeiros anos da década de 70 (os créditos são de 73, mas cheguei a achar referências de que teria sido gravado na França em 1970 e só lançado no Brasil, 3 anos mais tarde), já permitiria uma leitura nesse sentido, mas o principal aval para uma interpretação dessa natureza está nas características estéticas que predominam no LP.


A instrumentação, predominantemente arrastada e melancólica, compõe um tecido sombrio que flui como um lamento visceral que não pode (ou não quer) se conter e que parece não se esgotar em cada canção... parece antes, continuar mesmo após o fim de cada faixa, seja porque o sentimento segue na memória, após a audição, como um moto perpétuo... seja porque prossegue na canção seguinte, da mesma forma que os dias de uma tristeza não curada se sucedem quase indistintos para quem os vivencia.


A interpretação de Vandré que oscila entre o sussurro e o grito parece à todo momento um choro viril, como o de um guerreiro ferido em combate, em diálogo constante com a harmônica de uma tristeza cortante entrelaçada aos fraseados melancólicos dos violões, violas e aos eventuais vocais sobrepostos.


Em aparente contradição com o que o tratamento musical aponta, o texto da canção de abertura “Na terra como no céu”, anuncia: “Não viemos por teu pranto/nem viemos pra chorar/viemos ao teu encontro/e estamos no teu altar/vou seguir nosso caminho/que é também seu caminhar/na força do teu carinho/esperamos nos salvar/na terra como no céu/no sertão como no mar/nas serrar ou nas planuras/esperamos nos salvar/estando sempre altura/nos teus caminhos lutar/reparte entre nós o pão/diante do seu altar/a justiça e a riqueza/que fizemos por ganhar”(...).


A busca por justiça social que pautou os principais trabalhos sessentistas de Vandré se mntém como força motriz, mas o tom de súplica religiosa, não oculta um certo sentimento de impotência diante da realidade:”não deixa a gente passar/pela fome em tua mesa/não viemos por teu pranto/nem viemos pra chorar”. Curiosamente, a essa frase se segue um belissimo e sofrido vocal que arrepia por seu tom de lamento. Contradição, ou intencional efeito irônico?


É dificil não associar os versos sofridos que se seguem (na faixa que dá título ao disco) ao contexto de ditadura, de censura e momento de um homem que canta no exílio: “O anel que tu me deste/eu quardei pra me ajudar/construi numa viola/de madeira o teu altar/o amor que tu me tinhas/eu roubei pra me salvar/toda hora em que a danada da saudade/me pega/Joema dos olho claros/bem verdes das cor do mar/me dava tanta alegria/que eu não preciso sonhar/basta me lembrar agora/das coisas que deixei lá/Joema sempre esperando/na praia do grande mar/Waldomiro das estrelas/não podia se encontrar/tinha tudo que queria/dizia tudo há pintar/olhando pro céu de frente/perdido sempre em chegar/Waldomiro das estrelas/pedia para voltar”.


A certeza messiânica de quem escreveu “quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”, ou “o terreiro lá de casa não se varre com vassoura/varre com ponta de sabre e bala de metralhadora”, dá lugar à perplexidade e a um desamparo que pede por redenção: “que faço agora Maria/que faço agora diz já/ de longe que eu ouço hoje/as coisas que vão voltar/em ti em ti e comigo/agora no Deus dará/das coisas de todo mundo/na vida do bendirá”


Mas o tom aguerrido do militante da “canção de protesto” permanece vivo em “Vem vem” : “morena saia da frente/que agora eu já vou passar/vem vem maria/vem vem joão/
vem virgulino meu capitão/eu canto canto/eu brigo a briga/porque sou forte e tenho razão/saia da minha frente/que agora eu quero passar/vai companheiro/vai meu irmão/no paraíso canta a canção/que diz da vida/que diz da morte/que anda solta no meu sertão/vem vem maria/vem vem joão/vem virgulino meu capitão/eu tomo a vida que esta na morte/se a morte as vezes é solução”. A retomada da figura mítica do cangaceiro pode sugerir uma analogia com a condição de marginalidade à qual fora relegada a resistência política ao regime. Contra a violência estatal, só a violência clandestina que se torna aos olhos da oficialidade, análoga ao “banditismo”?


E a dor do exílio salta de novo das entrelhinhas de “Canção primeira”, assim como a impossibilidade de ações efetivas que encontram seu substituto simbólico na “canção primeira/ livre e livradeira”: “A canção primeira/como a derradeira/não vá, te negar/A canção primeira/sem eira e nem beira/é só te lembrar/Na viola amiga,/que é chegada antiga/pra te acompanhar/Da canção primeira/livre e livradeira/que eu quero te dar/Compreende amiga/que eu não marque ainda/quando te encontrar/Que eu faça cumprida,/tanto quanto a vida/que foi só cantar/Dessa história antiga,/às vezes cantiga/pra eu poder contar/De ti companheira,/tu de corpo inteira/como eu pude amar/E perdoa amiga,/que eu não vá /correndo/hoje te abraçar/Nem cortar caminho,/nessa caminhada/que é pra te encontrar/Que eu guarde a esperança,/que vem vindo o dia/de poder voltar/Sem ter na chegada,/que morrer amada,/ou de amor matar”.


Se um dia teremos uma versão completa sobre a história desse grande artista da nossa canção e que possa desmentir ou confirmar as lendas que o cercam, é impossível prever. Mas o que parece certo após a audição de “Nas terras do benvirá” é o quanto o período ditatorial representou um desvio traumático na sua trajetória artistica e existencial, assim como de outros contemporâneos. Se realmente os militares não tocaram em Vandré, como o proprio afirmou em entrevistas, é inegável que o contexto de repressão e censura interrompeu de forma brutal uma trajetória publica que poderia ter legado uma contribuição ainda mais rica a tradição da canção de temática social.


Faixas
1 Na terra como no céu
(Geraldo Vandré)
2 Das terras de benvirá
(Geraldo Vandré)
3 Vem, vem
(Geraldo Vandré)
4 Canção primeira
(Geraldo Vandré)
5 De América
(Geraldo Vandré)
6 Sarabanda [A festa do Lobisomem]
(Tema livre de Geraldo Vandré)
7 Maria memória da minha canção
(Geraldo Vandré)
8 Bandeira branca
(Geraldo Vandré)

Para baixar: http://loronix.blogspot.com/2006/09/geraldo-vandre-das-terras-de-benvira.html

6 comentários:

  1. Salve Edinho,
    Muito pertinente este post em homenagem a obra de Geraldo Vandré, espectro que ronda a música popular brasileira.
    Parabéns pelo blog.
    Abraço, Pedro

    ResponderExcluir
  2. Na estranhesa do que vem a ser vida... E estavamos, todos, ainda que pudesse ser outra coisa, que não vida, repensando tudo o que nos restára, deixando aqui, nosso outro lamento, mais antigo do que nossa própria utopia. A utopia de cada dia... Muralhas ocultas pela selva de pensamentos outros que não pudemos conceber. Foram esses, outros dias.

    Iberê Rodrigues

    ResponderExcluir
  3. esse link do loronix não existe mais pra baixar. tem um novo link disponivel?

    ResponderExcluir
  4. A primeira parte de "Das terras de benvirá" foi a entrevista concedida por Vandré ao Geneton. Sem ela não compreenderia o contexto. Vandré é um brasileiro coerente por suas atitudes e idéias. É preciso conhecê-lo para entender.

    ResponderExcluir
  5. A primeira parte de "Das terras de benvirá" foi a entrevista concedida por Vandré ao Geneton. Sem ela não compreenderia o contexto. Vandré é um brasileiro coerente por suas atitudes e idéias. É preciso conhecê-lo para entender.

    ResponderExcluir