domingo, 2 de maio de 2010
Gil – Sem medo da morte e com sabedoria (impressões do show BandaDois – Teatro Central JF 29/04/2010)
Da mesma forma que é estimulante ver o Caetano da fase “Cê” assumindo suas fragilidades, angustias e raivas como um adolescente da “melhor idade” e expressando isso numa linguagem musical quase rock e cheia de “arestas insuspeitadas”(como diria o próprio) – é uma experiência intensa ver o Gil brindar a platéia com o vinho da sabedoria acumulada em sua prolífica trajetória, no show BandaDois.
“Sabedoria”? Sim! Essa me parece uma ótima palavra para a impressão global transmitida pelo show apresentado no Teatro Central, desde que se dispa a palavra sabedoria de qualquer sombra de moralismo. A sabedoria de uma vivência musical e existencial sem dogmas, que se permitiu passar por “várias” e trazer na bagagem uma serenidade inquieta, de quem está longe de se acomodar.
Um presente especial à parte, foi a participação de Milton Nascimento (e de dois músicos de sua banda) para o bis que culminou com um belo ritual, no qual Gil e ele desceram para a plateia entoando o ‘refrão-mantran-afro” da canção “Babá Alapalá”. Uma sábia reverência a ancestralidade africana. O encontro de dois ícones da musicalidade afro-brasileira traçou novamente a ponte mágica “Minas/Bahia” que as parcerias entre os dois representam tão bem. Mas antes desse clímax, muita água boa já havia rolado.
Apresentando uma mostra generosa da vasta reflexão “filosófico-poético-musical” que Gil vem legando à música brasileira em sua longa estrada, o show teve um inevitável tom de maturidade e serenidade, sem deixar de ser lúdico e instigante.
A palavra “sabedoria” pode ser aplicada também ao tratamento instrumental, a um só tempo econômico e rico, preciso e elegante. Seus arranjos acústicos apoiados nas cordas (violão e voz de Gil, o violão de seu filho, Bem Gil, e o cello de Jacques Morelenbaum), são um tratamento perfeito para revelar toda poesia e musicalidade das canções .
O repertório reuniu clássicos próprios (“Flora”, “Super-Homem”,”Lamento Sertanejo” “Metáfora”, “Panis et Circenses” “Refavela” e “Refazenda”), canções inéditas (“Das duas, uma” e “Quatro coisas”), e autores fundamentais à formação do artista, como Dorival Caymmi e Jackson do Pandeiro (afinal, faz parte da sabedoria saber prestar tributo aos mestres precursores).
Me perdoem a insistência, mas, de sabedoria também é o tom que emana da inédita “canção/conselho/reflexão” feita a pedido de uma de suas filhas como presente de seu casamento: "Se forem hábeis e sábios e sãos/ Saberão ser amáveis e tempo terão/ Para fazer da vida a dois, dois chumaços de algodão"...
Vale destacar que um dos pontos altos do show foi a interpretação dramática para uma de suas canções (relativamente) mais recentes. Gravada inicialmente no CD “Banda Larga Cordel”, “Não tenho medo da morte” é daquelas músicas que já nasceram “clássicas” e que crescem em humanidade no palco. A interpretação seca, permeada de vários momentos soturnos, beira o assustador em certos trechos, não fosse a leveza e irreverência com que o tema é habilidosamente trabalhado pelo artesão.
A coragem com que Gil encara a face da morte e o inevitável medo... coragem de ter medo... fortaleza de se assumir frágil...humano... é tocante e ao mesmo tempo transmite uma sobriedade impressionante: “não tenho medo da morte/ mas sim medo de morrer/qual seria a diferença/você há de perguntar/é que a morte já é depois/que eu deixar de respirar/morrer ainda é aqui/ na vida, no sol, no ar/ainda pode haver dor/ou vontade de mijar/ a morte já é depois/já não haverá ninguém/como eu aqui agora/pensando sobre o além...”
Como no nonsense de um conto Zen, a impressão é de que, do topo da montanha, o sábio cancionista contempla o caminho trilhado, enquanto se prepara para continuar a subida e nos brindar com novas e boas safras de seu vinho...
Que venham breve!
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