quarta-feira, 12 de maio de 2010

PICASSOS FALSOS (1987) – ABRINDO AS PORTAS PARA A MODERNA MÚSICA BRASILEIRA.



Voltando às “esbarradas” com velhos vinis pelo caminho, a capa desse primeiro álbum da banda carioca “Picassos Falsos” veio me perseguindo nas últimas semanas. Primeiro na parede do Cultural Bar, onde eu bati o olho por acaso e me espantei com a constatação de como esse disco tinha ficado esquecido em função do “Supercarioca” (segundo álbum da banda) ter se tornado o trabalho mais reconhecido da banda e como mesmo este ainda merece um lugar mais sólido nas listas dos discos fundamentais do rock brasileiro.

Depois disso topei com a referida capa no Museu do Disco e quase comprei de novo o álbum, mesmo já tendo ele em casa. Me veio a sensação de que este disco estava pedindo para ser re-ouvido e comentado à luz de todo esse tempo que nos separa dos longínquos anos 80 (mais precisamente 1987). Bom... e quando o espírito de velhos discos fala... é melhor obedecer! Então, lá vai:

O vinil abre já de cara com “Carne Osso”, na minha visão, sem dúvida uma das melhores e mais originais canções do rock brasileiro de todos os tempos! A abertura com a batera hipnótica de Abílio Rodrigues, seguida dos efeitos psicodélicos magistralmente conduzidos por Gustavo Corsi e o baixo sinuoso de Zé Henrique antecipam toda a carga explicitamente sensual que da tom da música. Um perfeito hit underground que ainda hoje soa esteticamente transgressivo. Humberto Effe transitando entre momentos de suavidade e agressividade, com um timbre rasgado extremamente original, lança versos que ainda hoje soam definitivamente modernos: “Você é minha cadeia/ enjaulado fico preso no teu corpo/ você caça em suas teias/ como seu escravo/selvagem não me canso/ pra que fugir me entregar é a única saída/ como seu escravo me perdi na sua selva/ meu coração preso nessa cela abre as pernas da tua paixão (...)”.

O processo se encaminha num crescendo hipnótico parecendo querer conduzir a um profano transe xamânico urbano, algo como um Jim Morrisson tropicalista impregnado pelo niilismo do pós-punk. “Enquanto feras estão soltas você me tortura a cada carência/ a cada violento arranhão/ se pensa que isso é paixão/esqueça!/ certas coisas não se sentem só no coração(...) o mundo anda mal/mas sou eu quem não presto/ sou resto de uma idéia de uma nova rebeldia/ o povo dessa terra se balança de alegria vejo a tristeza se encharcar de euforia(...)”. Era um correspondente digno e totalmente brasileiro (sem nenhum teor de cópia) da reapropriação que no momento, bandas gringas como Echo and The Bunnymen e The Cult, faziam do lado mais sombrio dos anos 60, no que na época ficou conhecido como “neo-psicodelismo”.

E merece uma reflexão à parte, a premonitória citação do samba “Se Você jurar”, de Ismael Silva, que parece trazer embutidas, sugestões de todo um leque de diálogos possíveis entre a moderna música pop e a tradição brasileira, que viriam a se concretizar somente a partir da década seguinte (fora outros pioneiros oitentistas como a banda Fellini e os Paralamas).

Vale lembrar que em 87, a regra ainda era mimetizar as influencias mais relevantes do rock gringo contermporâneo (o que muitas vezes foi feito com muita categoria) e que uma reaproximação com leituras mais “pós-tropicalistas” do rock, assim como uma reabilitação de referências sessentistas e setentistas, viriam a se delinear muito lentamente.

Talvez a sequência com “Quadrinhos” (sem dúvida a produção mais próxima de uma linguagem pop no álbum) possa causar um certo baque para o ouvinte que tenha embarcado de cabeça na onda lissérgica da primeira faixa, mas a qualidade e o pique da canção valem o risco. Um dos bons hits dos 80, ela revela claramente que uma das fontes centrais da mistura do “Picassos” estava na Black music dos anos 60 e 70. Um funk “racha assoalho” na linha James Brown, com a proposta de fazer dançar e pensar, meta que a lírica de Humberto Effe cumpre com perfeição: “Meu amor olhe pros lados/desde criança só lemos os quadrinhos dos jornais”.

A pressão dançante prossegue com versos ainda mais afiados em “Que horas são”: “Em cada natureza de concreto/de barulho alto/ um pouco da mentira que me cerca (...) por isso a cada passo desconfio da minha própria sombra/ a guerra pode ser declarada e desabar um circo sem lona/(...) O tique taque dos relógios ........... os meus riscos/ de ganhar ou de perder/ num planeta de reis e submissos/ganhar, comprar, vender, ser cada vez mais rico/ é a sua missão/ para depois morrer como seus inimigos”.

A incorporação de ritmos brasileiros à guitarras “na pressão”, começa a se tornar mais evidente nas faixas seguintes. O tom subjetivo sucede à crítica social: “Nunca espere muita coisa da minha razão/ às vezes posso entrar em guerra comigo mesmo/ nunca espere muita coisa da minha paixão/ raciocinar demais pode ser o meu defeito/ Ligo a TV/ ligo o rádio/ligo tudo/ mas não me ligo em nada/ estou mudo/ fico parado esperando o rápido ruído de alguém como você/ bater à porta”. A condução “guitarreira’ abre caminho para o futuro do rock nacional, alguns decibéis acima da pressão que predominava no cenário brazuka até então.

O swing black segue embalando versos ácidos e sombrios, retrato fiel da visão crítica profunda que a geração 80 vivenciou: “Qual a censura que vai cortar nossos pulsos/ A cor do nosso sangue já cai demais por aí/ ficamos bêbados/largados imundos/ procurando um chão/ou qualquer canto pra dormir/jogados como todos estão jogados/ nesse mundo que é uma máscara/ Levanto tarde/O sol e o seu retrato/ Simplesmente uma nova esperança(...) Eu posso ser o próximo herói e depois virar um inimigo nacional/ ou também posso ser nada um vira-lata que perdeu a noção entre o bem e o mal”.

Não há dúvida que a herança niilista do punk está nas entrelinhas de versos como os de “Um bebado”, assim como a desconfiança em relação à Nova República, ao esboço de democracia, a uma sociadade padronizadora... sobra disso tudo resguardar alguma subjetividade e afetividade: “O que a gente não consegue responder/ é pra que lado ainda se pode caminhar/(...) Tropeço nos meus próprios passos/ nos mesmos buracos luto pra não mais cair/(...) sou civilizado/bem educado/ando perfumado como um bom rapaz/ os meus pecados sou eu mesmo quem faço/mas os meus direitos nunca sei quem faz/que tal a gente relaxar um pouco/você me quer e eu quero tanto você/ se ainda nos escondem um milhão de coisas/ esse amor é que a gente ainda pode viver”.

E o rock maracatu pré-Chico Science, “Idade Média” salta como um dos pontos altos pouco valorizados do disco, e seu esquecimento é uma perda inestimável para a história do rock brasileiro. Além de musicalmente arrombar a porta que separava os anos 80 dos 90, tem um dos grandes textos do rock brazuka e uma sonoridade ímpar. Com seu refrão síntese “tente não vestir o índio que existe em você”, essa música merece figurar entre os hinos do rock nacional. Ao lado, por exemplo, de “Ideologia”, e “Geração Coca Cola”, está entre as melhores reflexões sobre a alienação e ainda tem muito a dizer sobre os dias em que vivemos.

“O ronco dos motores cega seus ouvidos/a luz dos refletores ensurdece seu olhar/ (...) que futuro pode rolar de suas mãos/se você vê de tudo e finge não saber de nada/ e nenhuma palavra a essa hora pode mais te iludir/tente de vez esquecer esse planeta/ caia na farra dance, dance, dance/ até a madrugada cair/ deixando de lado essa cara mau encarada/ nas ruas mau iluminadas/ enquanto a bomba não vem/ (...) nossa tribo já chegou bem mais perto da destruição/ nossa tribo, hoje em dia/ fala bem menos com o coração (...)”.

Depois de toda essa selvageria, “Olhos Mudos” funciona como um bônus lírico e novamente extremamente original, com uma percussão afro em meio a efeitos psicodélicos introduzindo um romantismo áspero: “Buscando o infinito cato a minha mente/ que não capta um ponto além/ da minha vontade perdida de viver/ Sinto e não sinto nada/ varo a madrugada sem novas companhias/ (...) Minha vida ainda é pouca pra virar pó/ nas ruas cada vez mais sujas/ procuro encontrar no mundo/ algo além de mim/ Mas sei seus olhos estavam mudos/ficaram prendendo nossos sonhos sem volta”. Fim de uma viagem experimental-dançante-psicodélica em busca de novas fronteiras para o rock e a música brasileira. Essa jornada teria uma segunda sequência ainda mais primorosa no álbum seguinte: o “Supercarioca”.

O preço por dar alguns bons passos à frente de seu tempo e por viver num tempo de rápidas reviravoltas econômicas, estéticas e mercadológicas, parece que já foi pago e alto! Agora, pode ser um bom momento para receber o devido reconhecimento pelo vanguardismo tão necessário e por ter ajudado abrir portas por onde muitos passaram com relativa facilidade rumo à respeitabilidade musical e até ao sucesso mercadológico. Que venha!

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